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As lutas e o alívio de Ceni em versão técnico

Em nova função, ídolo são-paulino vira personagem em transformação – agora falível como treinador. Semana tem pressão, proteção, variações de humor e torcida impaciente

Fazia 16 graus, e o vento frio obrigava os torcedores, quase numa onda, um a um, a aumentar a quantidade de agasalhos conforme se aprofundava a noite nesta segunda-feira, no Morumbi. O estádio era uma vastidão para os poucos que se arriscaram a chegar cedo – em tempo de ouvir o sistema de som anunciar os jogadores: os titulares, com mais aplausos para Lugano, e depois os reservas, com indiferença exceto a Gilberto. E em seguida o treinador, com dois ou três segundos de suspense, como quem convoca a grande atração:

– Técnico... ... ... Rogéeeerio Ceni!

E então aplausos, assovios, gritos de incentivo. Aquele era, afinal, o nome do maior de todos os ídolos que o São Paulo Futebol Clube já criou – um ídolo que, em instantes, como treinador, teria um jogo que poderia arremessá-lo em enorme crise ou aplacar a pressão que começava a envolvê-lo.


Agora técnico, Ceni tenta se acostumar a seu novo habitat e com novo uniforme (Foto: Reprodução)

O cenário não era dos mais animadores: em uma segunda-feira, em noite de frio e chuva, com o estádio longe de sua lotação, vindo de eliminações sequenciais no Paulistão, na Copa do Brasil e na Sul-Americana e de derrota na estreia do Brasileirão, o São Paulo receberia um teórico candidato a rebaixamento, o Avaí. A crueldade do futebol indicava duas possibilidades: ou vencer, ou padecer.

E os dois caminhos estavam umbilicalmente ligados àquele homem que emergia do vestiário pouco depois dos jogadores, contornava o campo em meio a cumprimentos com fiscais, jornalistas, adversários, e ia se posicionar ao lado do banco de reservas, junto à área técnica, seu habitat desde janeiro deste ano, quando iniciou a carreira de técnico. Naquele momento, os dois times estavam alinhados, 22 jogadores cantando o hino nacional, mas a maioria das câmeras os ignoravam: elas estavam apontadas para um homem só.


Rogério Ceni, a personagem em transformação que as câmeras buscam no Morumbi (Foto: Marcos Ribolli)

Rogério Mücke Ceni, 44 anos, nascido em Pato Branco, cidade paranaense de forte influência gaúcha, vivia naquele momento, ao mesmo tempo, a experiência mais rotineira de sua vida (defender o São Paulo) e uma realidade nova (fazê-lo como treinador). Dos tempos de goleiro, ele carregava um cartel de títulos sobrenatural: duas Libertadores, dois Mundiais, três Brasileiros - mais Paulistas, Recopas, Sul-Americana, Conmebol. E um apêndice: 132 gols marcados. Não como atacante de faros apurados, meia de chegadas oportunas ou lateral de passeios despreocupados: como goleiro.

Mas ali havia uma personagem em transformação, e é por isso que as câmeras estavam apontadas para ele: porque Ceni era o herói sob dúvidas, em versão carne e osso, mais crua do que aquela persona mitológica dos tempos de goleiro. Aquele ali era o Ceni sem capa e superpoderes, era o Ceni treinador, e treinadores falham, erram, irritam a torcida. Era o retrato do mito quando humano.

SOBRE FALAS E PRANCHETAS

Fui apresentado rapidamente a Rogério Ceni por Juca Pacheco, assessor de imprensa do São Paulo, na manhã de quinta-feira, 18 de maio, quatro dias antes do jogo contra o Avaí. Ele me deu boas-vindas, eu disse que era um prazer conhecê-lo, mas o mais importante acontecia a dois ou três metros dali: Diego Lugano, encerrado o treino, conversava com um punhado de jornalistas.

Lugano é um cara magnético - com sua mistura de zagueiro feroz e sujeito bom de prosa, educado e articulado. O papo durou bastante, talvez uma hora, e o uruguaio teorizou sobretudo a respeito do tratamento dado pela imprensa brasileira à confusão no jogo entre Peñarol e Palmeiras, pela Libertadores. Em sua visão, o noticiário falhou ao tratar os brasileiros como vítimas e os uruguaios como vilões.

– Falaram que poderia ter emboscada nas ruas. Como assim?? Em Montevidéu???!! – exclamou, referindo-se à habitual pacatez da capital uruguaia.

Encerrada a conversa, antes de rumar para o vestiário, Lugano brincou que fazia uma hora que os jornalistas não falavam em crise no São Paulo, em crise com Rogério Ceni. A brincadeira tinha um fundo absolutamente sério. Aquele era justamente seu objetivo: usar o papo como diplomacia para tentar melhorar o clima e amenizar as críticas da imprensa ao treinador. Horas antes, ele já tinha sido o escalado para a entrevista coletiva. E dissera:

"Acho que a figura dele (Ceni) para o futebol brasileiro, para essa indústria de entretenimento, faz muito bem. Tudo gira em torno dele. É uma figura muito forte, amado ou adiado. Tem muitas pessoas esperando que seja exitoso ou que fracasse"

A semana de preparação para a partida teve elementos atípicos. O principal deles foi o vazamento da informação de que Ceni, no intervalo de clássico com o Corinthians, entrou enfurecido no vestiário e chutou uma prancheta, que acertou Cícero – o que teria irritado o jogador. O clube convocou uma coletiva com o volante na quarta-feira, dia de folga do elenco.

Ele confirmou parte do episódio: que houve a irritação de Ceni, mas que o objeto (um quadro, não uma prancheta) mal o acertou, e que não houve discussão entre eles. Um dia antes, na terça, o designado para falar com a imprensa foi Jucilei. Na segunda, foi Rodrigo Caio. Não por acaso, o clube escalou três jogadores experientes ou instruídos para falar sobre o momento do clube depois da derrota para o Cruzeiro.



Lugano usa experiência para defender trabalho de Rogério ceni (Foto: Alexandre Alliatti)
Na sexta, foi a vez de Ceni falar. Ele entrou na sala de entrevista pouco depois das 9h. Às 8h, já estava no campo observando suas condições para o treinamento – visto que chovia muito. Diante dos jornalistas, ficou com expressão fechada, falando baixo, em tom quase monocórdico. Era evidente que estava fazendo um sacrifício – que só estava ali porque a obrigação mandava. Em respostas, disse ser alvo de “perseguição de alguns da imprensa” e de “histórias fictícias”.

Os últimos dias tinham sido de críticas fortes a Ceni – nos tempos de jogador, um profissional acostumado mais a vencer do que a perder, a ser mais elogiado do que criticado. Além das eliminações, o time acumulava desempenhos ruins – foi muito mal contra o Defensa y Justicia na queda na Sul-Americana e se mostrou inofensivo depois de levar o gol do Cruzeiro na estreia no Brasileirão. Além disso, era questionado o posicionamento de Ceni nas coletivas pós-jogo: defendendo-se com números como aproveitamento, posse de bola e finalizações, negando vexame na queda na Sul-Americana, ressaltando que sua equipe joga sempre para vencer.


Palavras mais usadas por Ceni nas quatro coletivas analisadas: quanto maior e mais azulada, mais frequente ela é. A palavra que ele mais utilizou foi "não" (Foto: GloboEsporte.com)

Nos quatro jogos anteriores, ele tinha dado as seguintes explicações:

CRUZEIRO 1 X 2 SÃO PAULO – COPA DO BRASIL – 19/04

O que aconteceu: venceu o Cruzeiro por 2 a 1 no Mineirão no jogo de volta da Copa do Brasil e foi eliminado por causa da derrota de 2 a 0 na ida.

O que disse Ceni: disse que só tem elogios a seus jogadores. Afirmou que o São Paulo, a exemplo do primeiro jogo, buscou o gol do começo ao fim. Lamentou a primeira eliminação no ano em um torneio de mata-mata. Disse que o Cruzeiro é um grande time que vive “principalmente da parte individual” e de bolas paradas. Destacou que o São Paulo teve números superiores nos dois confrontos e opinou que esses números pouco importam para quem analisa futebol.

CORINTHIANS 1 X 1 SÃO PAULO – CAMPEONATO PAULISTA - 23/04

O que aconteceu: empatou por 1 a 1 com o Corinthians fora de casa e foi eliminado nas semifinais do Paulistão.

O que disse Ceni: observou que sua equipe finalizou o dobro e teve 42 jogadas aéreas. Destacou a boa postura defensiva do Corinthians. Lembrou que nos dois últimos jogos conseguiu vencer o Cruzeiro e empatar com o Corinthians fora de casa. Citou o retrospecto na temporada: 11 vitórias em 23 jogos. “Gosto muito do meu trabalho”, garantiu. Disse que confia em classificação para a Libertadores no Brasileirão. Argumentou que jogou melhor futebol tanto na semifinal do Paulista quanto na Copa do Brasil.

SÃO PAULO 1 X 1 DEFENSA Y JUSTICIA – SUL-AMERICANA – 11/05

O que aconteceu: empatou por 1 a 1 com o Defensa y Justicia e foi eliminado na primeira fase da Sul-Americana.

O que disse Ceni: disse que não considera a eliminação um vexame. Observou que o São Paulo conseguiu empatar os dois jogos e caiu no saldo qualificado. Pediu que seu trabalho seja analisado pelo desempenho diário. Citou, mais de uma vez, os números da temporada: 11 vitórias e nove empates em 24 jogos. Disse que esse seria um bom aproveitamento no Brasileiro. Observou que o Cruzeiro também foi eliminado de duas competições em quatro dias. Lembrou de lesões. Destacou que mandou a campo os jogadores mais ofensivos que tinha no banco. Disse que joga sempre para a frente, sem medo de perder, e que não tem nada a reclamar de seus atletas.

CRUZEIRO 1 X 0 SÃO PAULO – BRASILEIRÃO – 14/05

O que aconteceu: perdeu por 1 a 0 para o Cruzeiro, no Mineirão, na estreia no Brasileiro.

O que disse Ceni: disse que o jogo foi equilibrado, com poucas chances de gol para os dois times, e que poderia ter terminado empatado. Afirmou que o gol saiu em um lance “medonho”. Disse que o São Paulo, depois do gol, pressionou bastante, mas que o Cruzeiro soube se defender bem. Explicou que mudou a forma de jogar, esperando o oponente. Ressalvou que nenhum visitante venceu na rodada – e que alguns foram goleados. Viu atuações individuais abaixo do esperado. Afirmou que confia na reação de seu time, especialmente depois do retorno dos jogadores lesionados. Alegou que não considera, nos números, o começo de temporada “tão ruim”. Opinou que os resultados ruins foram “pontuais” – em jogos de mata-mata, e que por isso chamam mais a atenção. Admitiu que a equipe “não vive o melhor momento” no ano.

ACERTOS E ERROS

O jornalista André Kfouri, nesta segunda-feira, definiu bem a dualidade que Ceni costuma despertar. Escreveu que o treinador é tratado como “uma figura dividida por duas exigências irreais: o ser que nunca pode errar e o que jamais conseguirá acertar”.

Esse extremismo é consequência do tamanho de Ceni – e das paixões que ele desperta em direções opostas, rumo ao amor cego e à raiva incondicional. Só que o treinador Rogério Ceni fica justamente no meio do caminho entre esses dois polos. Ele é um jovem técnico, recheado de boas ideias e de concepções modernas, mas que cometeu erros em seus primeiros meses de trabalho; é um profissional em processo de aprendizado, com vontade e inteligência de sobra para aprender, mas que por vezes soa como quem já sabe tudo; é um trabalhador abnegado, perfeccionista, extremamente sério, que detesta perder. É, em suma, um treinador com qualidades e defeitos.

É difícil fazer previsões sobre aquilo que jamais aconteceu, mas talvez o principal erro de Ceni tenha sido apostar em uma ideia de jogo ofensiva, envolvente, agressiva – mas sem ter elenco para isso. É possível que ele tenha dado o passo maior do que a perna. Algumas escolhas, caso de Neilton como titular contra o Defensa y Justicia e ausente até do banco no jogo seguinte, também são questionáveis. E algumas explicações em entrevistas realmente soaram como desculpas – mesmo que não fosse essa a intenção.

O uso reiterado de dados fez o treinador ser comparado ao presidente da República, Michel Temer, em seu primeiro pronunciamento após a explosão da crise política. Temer usou números sobre o crescimento econômico do país para se defender. No Twitter, pessoas reagiram assim:










Mas o que mais importa, a base de tudo, é o trabalho diário, e nisso Ceni é elogiado. Seus treinos são intensos e didáticos – ele participa ativamente, orientando os jogadores sem parar, por vezes falando com velocidade de locutor de turfe. E trabalha sério, como um novato que quer mostrar resultados, não como maior ídolo do clube. Na sexta-feira, comandou treinamento abaixo de temporal.


Rogério Ceni treina o time sob temporal na sexta-feira no CT do São Paulo (Foto: Érico Leonan / saopaulofc.net)

Ele costuma chegar cedo ao CT, por volta de 7h30 quando o treino é matutino, e fica no clube de seis a oito horas diárias – além do período de estudos em casa. Tem como filosofia investir em análise de desempenho, em estatística, em diálogos com diferentes profissionais – como psicólogos e fisioterapeutas. Dá liberdade a seus auxiliares – Pintado e os dois estrangeiros, o inglês Michael Beale e o francês Charles Hembert.
A diretoria aprova seu trabalho, e isso dá a Ceni enorme imunidade a resultados como os do primeiro semestre.

O AMOR E A COBRANÇA; O PRAZER E O ALÍVIO


Bandeirão para Rogério Ceni (Foto: Alexandre Alliatti)

Duas horas antes do começo do jogo desta segunda-feira, um bandeirão tremulava em frente ao Morumbi com o rosto de Rogério Ceni e os dizeres que se tornaram famosos entre os tricolores: “Todos têm goleiros, só nós temos Rogério”. Entre os torcedores que se dirigiam às cadeiras do estádio, eram recorrentes camisas com o número 01 às costas. O Ceni goleiro segue no imaginário mais íntimo da torcida são-paulina.

Mas como ela reagiria a um momento ruim do time com o ídolo como treinador?
Assisti ao jogo contra o Avaí no segundo anel do Morumbi, exatamente atrás do banco onde Ceni dava suas orientações, em meio a torcedores. No primeiro tempo, com atuação segura, a torcida apoiou a equipe e pouco se dirigiu ao treinador – que, ao entrar em campo, teve o nome gritado em cantoria que o chama de mito. O gol de Lucas Pratto trouxe alívio à noite chuvosa. Rogério, na área técnica, comemorou com discrição. Fechou o punho e o agitou no ar algumas vezes. Em seguida, trocou abraços com colegas.

Veio a etapa final, porém, e o desempenho despencou. Aos poucos, torcedores começaram a cobrar Rogério, mas quase sempre sem ofensas, com muito mais respeito do que se costuma ter com técnicos em situações parecidas. Algumas frases que ouvi:

“Rogério, pelo amor de Deus, mexe!”

“Ê, Rogério... Vamo jogá, São Paulo!”

“Vamo mudá, Rogério!”

“O Cueva morreu, Rogério!”

“Vai esperar empatar?”

No auge dos problemas do time em campo, as reclamações ficaram mais agressivas:

“Volta pro gol, Rogério!”

“Não tá enxergando, ô merda?”


Torcedores do São Paulo reclamam com o time, e com Rogério, no segundo tempo do jogo contra o Avaí (Foto: Alexandre Alliatti)

E houve, em pelo menos três momentos, gritos solitários de “burro” – jamais em grupo, sempre individuais. O incômodo aconteceu especialmente quando o treinador colocou Luiz Araújo no lugar de Marcinho – os torcedores irritados preferiam que saísse Cueva. Depois, também houve murmúrios na entrada de João Schmidt (aí, sim, no lugar do peruano). Essa troca foi importante para o São Paulo retomar o controle do jogo e fazer o segundo gol com Luiz Araújo. Rogério percebeu que precisava povoar o meio com mais um jogador de marcação.

Encerrada a partida, o time foi aplaudido, e o treinador foi procurado, dentro de campo, pelos dois goleiros do Avaí. Ele continua sendo uma referência na posição.

Em seguida, Ceni foi participar do programa “Bem, amigos”, no SporTV, e voltou a virar assunto ao comentar o gesto de fair-play de Rodrigo Caio contra o Corinthians – quando o zagueiro avisou ao árbitro que o atacante Jô não fizera falta. O árbitro retirou o cartão que dera ao corintiano, e Ceni, no vestiário, repreendeu o zagueiro pela atitude. Rodrigo Caio foi elogiado e convocado por Tite, e Rogério, ao comentar a situação, disse:

- Talvez o Rodrigo e o Tite sejam pessoas melhores que eu.

A declaração se uniu a uma frase de Lugano na quinta-feira: que a única aula a que Ceni faltou em sua preparação como treinador foi a de “encantador de serpentes”. O uruguaio se referia à relação com a imprensa. No passado, Lugano usara o termo ao falar justamente sobre Tite.

- O Lugano falou, é verdade. Eu faltei nessa aula, continuarei faltando e faltarei até o final da carreira – disse Ceni logo depois do jogo.

A entrevista coletiva pós-vitória sobre o Avaí mostrou outro Rogério. Talvez pela vitória, talvez por orientação do clube, ele apareceu muito mais leve, sorridente. Não parecia a mesma pessoa de sexta-feira. A explicação para a mudança de atmosfera talvez esteja em uma resposta que ele deu ao ser questionado se tinha mais prazer ao vencer ou ao jogar bem.

"Quando jogo bem, vou muito feliz para casa. Quando venço, vou aliviado."

Rogério Ceni estava aliviado.

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